quarta-feira, 24 de junho de 2009


O melhor da amizade está fora de nós...

Quando me foi incumbida a missão de escrever um texto sobre amizade, fiquei bastante feliz e ao mesmo tempo preocupado. Feliz porque teria a oportunidade de escrever sobre um tema que povoa o imaginário de poetas, escritores e filósofos, e preocupado com o fato de que não sendo poeta,  escritor, e muito menos filósofo, acabasse escrevendo alguma bobagem. Talvez muitos discordem dessa afirmação, indicando que não existe nenhuma dificuldade em escrever sobre o respectivo tema, e que para isso basta apenas deixar a escrita ser atravessada pelos mesmos afectos que se fazem presentes nessa relação. Afinal de contas, quem não possui amigos? Concordo que ninguém precisa de uma autorização ou um conhecimento prévio para discorrer sobre amizade, mas sempre que me lembro daqueles que se dedicaram a escrever sobre esse tema, sejam os pensadores da Grécia antiga ou pensadores franceses contemporâneos, é impossível não sentir um certo receio. Mas deve ser paranóia de pesquisador. Queremos sempre analisar tudo, e nesse movimento acabamos esquecendo que a vida também é mistério, e que a beleza dela reside justamente em convivermos bem com o inexplicável. Como bem afirmou John Lennon: “Vida é aquilo que acontece quando pensamos o que fazer com ela...”. Não tem nada de místico ou sobrenatural nessa afirmação, a questão é puramente “fenomenológica” ou “fenomênica”, como queiram. Pensar a amizade como uma experiência singular arrebatadora cujas formas variam de acordo com as intensidades e afecções que atravessam as diferentes relações.

Apesar de nossa época ser caracterizada pela “fluidez” do laços sociais como bem afirmou o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, entendo que a amizade enquanto potência de vida, paixão alegre, continua resistindo às investidas dos microfascismos que vieram a reboque com a “capitalização” do mundo da vida. Anuncia-se aos quatro cantos do mundo que a expansão das novas tecnologias comunicacionais está dissolvendo os relacionamentos face-a-face, oferecendo em troca uma comunicação fria, “deslibidinada”: café sem cafeína, cerveja sem álcool, realidade sem real. O  produto desse fenômeno, dizem alguns especialistas, são homens e mulheres que não mais se prendem a relacionamentos a longo prazo. Não sou tão apocalíptico a ponto de acreditar que os seres humanos se tornaram reféns de uma máquina, ou melhor de uma tecnologia específica, e que agora os espaços de sociabilidade off line estarão com seus dias contados. Apesar de reconhecer que a expansão da internet reconfigurou de maneira decisiva as noções de tempo e espaço, promovendo uma transformação significativa dos nossos mapas subjetivos, penso que o desejo de estar-junto continua (e continuará) se expressando por todo o sempre. Como afirmou um conhecido filósofo francês “toda captura supõe uma dupla captura”, o que significa dizer que uma captura nunca é definitiva. A internet captura nosso desejo de estar junto, mas também é capturada por ele, e nesse movimento libera uma linha de fuga criativa subvertendo uma lógica que até então era apresentada como totalizante.

Se concordarmos com o pessimismo de alguns filósofos e sociólogos, podemos dizer que a experiência da amizade, que também é um laço social, está com os seus dias contados. Ao meu ver, mais importante do que comentar sobre a destruição de um modelo exclusivo de “sociabilidade”, é mostrar como essas transformações proporcionaram o surgimento de novos laços. Mas não quero que o texto se torne uma espécie de análise socioantropológica sobre a produção dos vínculos afetivos em nossos dias, pois como já afirmei, a experiência da amizade não pode (não deve) simplesmente ser reduzida a uma argumentação dessa natureza. Existem coisas que estão no plano do indizível, o que o poeta Olavo Bilac descreve de forma encantadora como “estados de alma”, aqui sem nenhuma conotação metafísica. Os “estados de alma” de Bilac são os momentos singulares vivenciados na (pela) experiência, o ser afectado.

Penso que a experiência da amizade é um desses estados, que não pode ser descrito, apenas vivenciado em devir. Devir-minoritário, devir-amigo, devir-eu-de-você, devir-você-de-mim. Quando afirmo que existem coisas que estão no plano do indizível, não estou me referindo a uma emoção interior que vem de um local desconhecido, o real não simbolizado da psicanálise, mas de algo que vem de fora com uma força tão grande que extrapola os sentidos de nossa pobre linguagem oral, e nessa hora é fundamental saber gaguejar em nossa própria lingua... ou, nesse caso, gaguejar em nossa própria escrita, fazer dela um deserto povoado. Esse texto não é uma produção minha, nem poderia, pois enquanto escrevia me deixei atravessar pelos sorrisos, apertos de mão, abraços, beijos, de todo(a)s aquele(a)s pessoas que estão comigo a todos os instantes, pois como já dissera o grande Marcel Proust: “o melhor da memória está fora de nós. Está num ar de chuva, num cheiro a quarto fechado, ou no de um primeiro fogaréu, seja onde for que de nós mesmos encontremos aquilo que a nossa inteligência pusera de parte, a última reserva do passado, a melhor, aquela que, quando se esgotam todas as outras, sabe ainda fazer-nos chorar”.

Parodiando Proust devo afirmar que “o melhor da amizade também está fora de nós”, está no outro (outrem), está em mim e você.

 * Texto publicado na Revista Bula 8 - Abril de 2009

 

quinta-feira, 18 de junho de 2009


Entre "Eichmans", "Josephs k" e "Mersaults"...

Neste último domingo, dia 14 de junho, acordei cedo decidido a retomar as atividades do blog, afinal de contas já ia fazer quase 9 meses que eu não publicava nada nesse espaço ao qual tanto estimo. Sem querer justificar minha ausência, até porque não sei se muitas pessoas sentiram minha falta, posso dizer que estive, quer dizer, ainda estou muito ocupado com os compromissos acadêmicos, entre os quais, atividades de pesquisa, leituras, participação em congressos, artigos, etc. Porém atualmente me sinto um pouco mais aliviado, o que me estimula voltar a escrever meus devaneios. Bom, onde estávamos...ah, lembrei. Acordei cedo pensando em publicar algo, mas ainda não tinha nada em mente. Então pensei, vou ligar a TV para ver se aparece algum fato novo que me inspire. Então, batata! Estou eu zapeando os canais e me deparo com uma discussão sobre um tema um tanto quanto batido e debatido, “a descriminalização da maconha”. Mesmo não sendo algo tão interessante de se ouvir às 8 da manhã de um domingo, decidi assistir para compreender as argumentações em jogo nesse embate. Entre os convidados um sociólogo e organizador da marcha da maconha no Rio de Janeiro, e um representante da associação dos magistrados, de cara, percebi que a discussão seria pelo menos divertida, para não dizer outra coisa. Entre os velhos discursos sobre estatísticas da violência envolvendo os usuários da maconha, passando pelas últimas descobertas da medicina em torno dos benefícios que podem ser extraído de tal erva, um em especial chamou minha atenção. Ao ouvir a fala do representante da associação dos magistrados comecei a pensar em Kafka e em Camus, ou melhor em Joseph K e no Sr. Mersault. Quem já leu “O Processo” e “O Estrangeiro”, certamente conhecem esses personagens, e talvez já tenha imaginado o porque dessa relação aparentemente esdrúxula. Para os que não leram eu explico: Joseph K, personagem de “O Processo” de Kafka e o Sr. Mersault, personagem de “O Estrangeiro” de Albert Camus vivenciaram situações semelhantes em suas respectivas histórias. Ambos estiveram diante de um banco de réus tendo que acertar contas com os guardiões da justiça. Bom, o caso de Mersault é bem diferente do caso de Joseph K, pois enquanto o primeiro fora levado aos tribunais por ter cometido um assassinato, o segundo desconhecia completamente os motivos  do seu julgamento.  O ponto comum entre os textos de Kafka e Camus, é que ambas as histórias evidenciam o quão abstrata, arbitrária e perversa é a máquina burocrática responsável pela criação das leis. Cheguei no ponto onde eu queria. Meu interesse não era falar sobre a discriminalização da maconha, mas sobre origem do discurso que fundamenta a argumentação dos magistrados, ou seja, dos guardiões da justiça. Ao ouvir na TV as palavras pronunciadas pelo representante da lei sobre a respectiva problemática, não conseguia identificar resquícios de pensamento, era como se ele não encontrasse possibilidades argumentativas para alem do Direito. Tudo se reduzia a uma questão de legalidade e ilegalidade. E se a lei brasileira prescreve a proibição sobre o consumo de tal substância, a discussão está encerrada. O Direito produz Eichmanns em série, pessoas que simplesmente cumprem ordens e não se questionam porque estão obedecendo. E nós questionadores dessa lógica, amargamos a condição de sermos eternos “Mersaults” e “Josephs K”.

quarta-feira, 17 de setembro de 2008


Time is progress? Time is illusion...


Você já teve a impressão de que o tempo está passando mais rápido? De que as 24 horas não são suficientes o bastante para realizar todas as atividades que programou durante o dia? Pois saiba que você está certo. Mas não foram as horas que diminuíram, o que mudou foi a maneira como nós estamos nos relacionando com o tempo. Muitos estudiosos, afirmam que tiramos o pé do freio e pisamos fundo no acelerador no início do século XIX, período que data o surgimento da Revolução Industrial. E, desde então, a palavra de ordem tem sido: acelerar. O trabalho - que antes era eminentemente artesanal -, migrou para o interior das fábricas, e conseqüentemente tornou-se o motor da engrenagem do sistema econômico que acabara de nascer. Logo, a velocidade tornou-se a principal aliada dos donos de indústria, que passaram a cronometrar o tempo de produção, visando maior lucratividade. E não foi apenas o tempo de produção que foi esquadrinhado. Mesmo fora da fábrica, o trabalhador passou a organizar a sua rotina tendo como referência as atividades desenvolvidas na indústria. Surgiu assim as noções de “tempo ocioso” e “tempo produtivo”, e desde então, é dessa maneira que organizamos nossa rotina. Não se pode precisar uma data para a origem do fenômeno da aceleração, porém, é consenso, que a guinada tecnológica proporcionada pela revolução industrial foi um grande potencializador do processo. Mesmo conhecendo a lógica perversa do fenômeno, aceitamos sem maiores concessões nossa sina de atleta velocista, e até desejamos isso. Não sabemos para onde estamos indo, nem onde fica a linha de chegada, mas isso não importa, a única coisa que devemos saber, é que precisamos chegar logo. A velocidade nos consome por todos os lados, ninguém quer perder seu precioso tempo com investimentos a longo prazo. Time is money! Time is progress!
Uma prática que nos permite, ou pelo menos permitia fugir dessa lógica predatória é a reflexão. Aquilo que muita gente insiste em chamar de “perda de tempo”. A imagem mais recorrente que eu tenho dessa prática está remetida a filosofia grega, ou para ser mais específico, à figura de Sócrates, o pensador por excelência, aquele que fazia de sua vida um exercício de contemplação incessante. Em nossos dias atuais, podemos dizer que a imagem de Sócrates está relacionada com a do “desocupado” que não tem o que fazer, por isso fica olhando para as estrelas num gozo ocioso. O pensamento tem que ser rápido, contemplação é para perdedores. Mesmo a universidade, que é conhecida popularmente como espaço de produção do “saber” (fiz questão de por saber entre aspas, pois entendo que nem todo conhecimento é saber), entrou na lógica da mercantilização do pensamento, ou seja, produção intelectual em série, cronometrada. Aquele que não produz num curto espaço de tempo, torna-se incompetente em potencial. Se no campo supostamente “intocável” da reflexão, o processo é semelhante ao das indústrias, o que dizer do nosso cotidiano? Em contraposição a imagem do pensador contemplativo, apresento a imagem patética do indivíduo diante de seu computador chateado porque o email está demorando a abrir. Dois tempos completamente diferentes. Aíon versus Cronos. Certamente, estou levando em consideração o processo de desterritorialização brutal que atinge em cheio todos os seres humanos, reconfigurando novos mapas subjetivos, traçando novas linhas desejantes. Não sou um neo-ludita, que abomina o contato com as novas tecnologias, sonhando com o retorno de um paraíso que nunca existiu, a não ser para os “românticos” de plantão. A questão é: o que fazemos com tanta velocidade? Bom, gostaria de escrever um pouco mais sobre essa questão, mas não posso “perder tanto tempo” com o texto de um blog não é mesmo?

sexta-feira, 12 de setembro de 2008


Homenagem


Esta semana resolvi falar de algo mais leve, que não tem relação nenhuma com Filosofia, Psicanálise, Sociologia e/ou Antropologia. Bom, relação até tem, afinal de contas, se o pensador esloveno Slavoj Zizek consegue extrair exemplos de desenhos animados, porque eu não poderia fazer um esforço semelhante e analisar um seriado de tv como “The Wonder Years”? A resposta é simples: porque eu não quero. Tenho certeza, que muitos daqueles que têm minha idade ou uma idade aproximada, já ouviram falar de um tal seriado chamado “Anos Incríveis”, que no início dos anos 90, ia ao ar todas as noites, por volta das 19:30 na TV Cultura. Aposto que nomes como Kevin Arnold, Winnie Cooper e Paul Pfifer soam familiares não é mesmo? Talvez alguns perguntem: Mas por que cargas d'água o João está escrevendo sobre esse seriado bobo? Eu diria que por razões bem simples. Primeiro, não acho que ele seja bobo, o que significa dizer, que seu comentário em relação ao mesmo não diz muita coisa sobre minha relação com o seriado. Segundo, porque essa semana bateu uma vontade de escrever sobre algo diferente para o padrão do blog, e terceiro – e que para mim é a resposta mais coerente -, porque este seriado tem um significado especial para mim. Quem já teve oportunidade de assisti-lo sabe que “The Wonder Years” era ambientado num subúrbio dos Estados Unidos na década de 60, e retratava o cotidiano de uma típica família americana, e a relação desta com os grandes acontecimentos que marcaram a respectiva década, como a guerra do Vietnan, a revolução sexual (se é que posso usar essa expressão), a luta por direitos civis de negros e mulheres, a explosão do movimento hippie, etc,...Mas não era por retratar esses acontecimentos que o seriado tinha e tem um significado especial para mim. Na época que comecei a assisti-lo, por volta de meus 16/17 anos, nem fazia essa conexão entre os dramas da familia e os acontecimentos políticos e culturais nos quais ela estava inserida.
Acredito que meu fascínio estava relacionado com a forma pela qual as pequenas coisas do cotidiano eram expostas no seriado. Quem de nós não teve um professor ou professora especial? Uma paixão adolescente? Um grupo de amigos/as inseparáveis? Era quase impossível não se identificar com algumas situações vivenciadas pelo jovem Kevin Arnold. A trilha sonora que acompanhava o desenrolar das histórias também mereceria uma postagem à parte, tendo em vista a seleção de “pérolas” que desfilavam todas as noites, à começar pelo tema de abertura “With a little help for my friend” na voz de Joe Cocker, versão esta, que na minha opinião, é bem melhor que a original dos Beatles. O engraçado disso tudo, é que mesmo agora, perto dos 30 anos, continuo me emocionando com o seriado da mesma maneira que a 12 anos atrás. Não se trata de saudosismo, de ficar remoendo um passado recente, mas de uma sensação boa que me invade sempre que assisto algum episódio. Sei que esses detalhes provavelmente não terá nenhuma importância para você, que está lendo esse texto, mas isso pouco importa, meu propósito não era convencê-lo de que “Anos Incríveis” foi o melhor seriado de tv de todos os tempos. Considero essas poucas palavras uma pequena homenagem a meu devir-menino, que não cessa de me me brindar com agradáveis surpresas.

quinta-feira, 4 de setembro de 2008


Algumas proposições sobre o devir-alcoólatra


Em sua famosa entrevista concedida a Claire Parnet que ficou conhecida como ABCedário, Gilles Deleuze versa sobre os mais diferentes temas: da animalidade ao desejo, da infância ao cinema, da familia à amizade, com a serenidade que é peculiar a todos àqueles que fazem da filosofia um exercício cotidiano. Dentre as muitas letras do alfabeto, escolhi a letra “B” para ser o fio condutor desse minha nova reflexão inacabada, pois é nesse momento da entrevista que o filósofo fala de sua relação com a “B”ebida. Todos aqueles que conhecem um pouco da história de Deleuze, sabem de sua relação com o álcool, e de como essa mesma substância quase o impediu de fazer aquilo que mais gostava: pensar. O que estimulava a produção de conceitos em um outro momento acabou se convertendo em um mecanismo inibidor. O alcoólatra, diz Deleuze, "nunca para de beber, nunca para de chegar a última bebida", a última bebida nesse sentido, é o último copo que seu corpo consegue suportar. Antes que alguém pense que os comentários do filósofo acerca da bebida tem uma ponta de ressentimento devido a condição de abstêmio que desfrutava na época, afirmo que Deleuze jamais agiria dessa maneira. O que o autor expôs em sua fala é que existem formas diferenciadas de se relacionar com o álcool, e que ele só pode ser considerado um potencializador da criatividade quando “ajuda a perceber que existe algo demasiadamente forte na vida”, citando como exemplo, a relação que alguns escritores mantinham com a bebida, entre eles, Thomas Wolfe, Fitzgerald, Henry Miller, entre outros. Deleuze sempre foi um grande admirador dos escritores anglo saxões, e nunca escondeu que preferia estes aos franceses, talvez pelo fato deles serem estrangeiros na sua própria língua. Para além da admiração pelos textos, existia uma admiração pela vida que estes escritores imprimiam no papel, uma vida que não era ficção, mas expressão de múltiplos devires: devir-minoritário, devir-mulher, devir-alcoólatra.
Ao mesmo tempo que o filósofo comenta sobre a produção de um corpo sem órgãos resultante da relação homem/álcool, percebe-se uma certa cautela em sua fala, como se este devir-alcoólatra tivesse um limite. Não que Deleuze estivesse reproduzindo o slogan “beba com moderação”, longe disso. A idéia era justamente mostrar que a linha de fuga produzida no ato de embriaguês pode se converter em linha dura, molar, levando ao desejo de morte. Penso que existe uma enorme confusão em relação a algumas práticas tidas como liberadoras, mas que na verdade fazem o sentido inverso. Já se tornou lugar comum entre alguns intelectuais e artistas falarem das drogas com um certo “algo a mais entre os dentes”, podemos citar os escritos de Baudalaire, Castañeda, e até mesmo do próprio Nietzsche. Não que esses autores façam apologia ou glamourizem o consumo de certas substâncias. O problema é a “lenga-lenga” de alguns que se utilizam de certos argumentos chavões pseudo-filosóficos para afirmar que é preciso “beber todas” para elevar as idéias. E o que dizer da embriaguês transloucada de Charles Bukowski e as viagens surreais de Jack Kerouac produzidas pela ingestão de peyote? Aqui já fiz menção a outras substâncias “entorpecentes”, o que não muda o foco da discussão, uma vez que a idéia é sair do estado de sobriedade. Para além de um moralismo gorduroso que impregna o discurso dos policiais do desejo, as questões que trago para pensarmos é: em quais circunstâncias é possível devir-alcoólatra? Todos devém ou trata-se de um privilégio de poucos? E o seu Joaquim, que bebe umas e outras e depois chega em casa quebrando tudo? Quando o álcool supõe captura? Não tenho respostas para essas questões...um bom vinho para refletir um pouco...talvez.

segunda-feira, 11 de agosto de 2008



Corpo marcado, ordem restituída


Grande segmento da população acredita que a maneira mais adequada de coibir a ação dos “transgressores da lei” e minimizar a violência urbana, é reprimindo da forma mais agressiva possível esses indivíduos, pois segundo os mesmos, a lei é “muito generosa com os criminosos”. Os representantes do Estado, pressionados pela opinião pública, acabam também agindo “emocionalmente” e em conformidade com o discurso apelativo de uma população assustada, confundindo por sua vez o papel de cidadão com o de autoridade. Hannah Arendt (1994) nos mostrou que o aumento da ineficiência da polícia está acompanhada do aumento da brutalidade policial, e ao que tudo indica, o uso da força/ violência legítima nas sociedades contemporâneas tem se revelado meio insuficiente e ineficaz para combater a violência urbana. Tentar extirpar o mal da sociedade a todo custo através da imputação de castigos dos mais diversos não é algo comum apenas a sociedades específicas, está presente em todas as culturas, como elemento fundador, que organiza e dar sentido a vida social dos indivíduos. Quando me refiro a uma violência fundadora, não estou querendo reproduzir a idéia de uma estrutura inconsciente como afirmariam os estruturalistas, ou mesmo como um instinto que produziria “indivíduos maus por natureza”, falo de algo presente na gênese das sociedades, como disposições corporificadas, internalizadas, e que constituem por sua vez, o habitus (para usar um conceito do sociólogo Pierre Bourdieu) desses indivíduos, através da assimilação de uma cultura da violência. A punição, que se constitui como a imputação de castigos físicos sobre o corpo e que tem como objetivo a restituição de uma ordem que fora perdida aparece como prática legítima em nossa sociedade, herança deixada de pai para filho, reproduzida através das instituições socializadoras. Aprendemos à custa de uma “pedagogia do medo” que a melhor maneira de educar nossos filhos é dando-lhes palmadas, fazendo com que os mesmos reconheçam desde cedo que o respeito e os “bons costumes” são adquiridos através de intervenções sobre o corpo. Segundo Caldeira (2000) “A marcação sobre o corpo pela dor é percebida como uma afirmação mais poderosa do que aquela que meras palavras poderiam fazer e deveria ser usada especialmente quando a linguagem e os argumentos racionais não são entendidos”.
Em nossas escolas, por muitas décadas, foi comum o uso da palmatória como instrumento de correção para alunos tidos como “indisciplinados”. Lembro das histórias contadas por meu pai que relembra com um certo saudosismo da época em que a tabuada era apreendida através da dor e sob o consentimento dos progenitores, que concordavam com tal atitude. Como podemos perceber, não nos admira que em nossa sociedade, indivíduos concordem com práticas punitivas, classificando-as como necessárias e ideais ao controle da violência. Nas delegacias e presídios de todo o país continuam a se repetir as mesmas cenas de um passado não muito distante, e que muitos brasileiros ainda trazem marcado em seus corpos.
A “violência policial” já não é mais entendida como procedimentos repressivos legais que garantiam por sua vez a segurança e tranqüilidade dos cidadãos, cada vez mais ela se configura como um conjunto de práticas ilegais cometidas por indivíduos que utilizam sua farda para impor regras de conduta de maneira despótica. Existem inúmeras pessoas em nosso país que não conseguem distinguir “controle de violência” e “abuso de violência”, o que acaba colaborando para a intensificação dessas práticas ilegais. Muitas vêem esse modo de agir da polícia como procedimento legal, que faz parte do “trabalho da policia”, com isso, espancamentos e outras diversas formas de violência deixam de ser denunciadas.


ARENDT, Hannah. Sobre a violência. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.
CALDEIRA, Teresa P. do Rio. Cidade de Muros: Crime, Segregação e Cidadania em São Paulo. São Paulo: Editora 34/ Edusp.

segunda-feira, 14 de julho de 2008


Animal, demasiadamente animal...

Existem livros que mudam completamente nossa relação com o mundo. Textos que nos deixam marcas profundas no ser (aqui, sem nenhuma conotação metafísica), e que nos leva a pensar sobre determinadas questões que cotidianamente passam desapercebidas. Para provocar uma ebulição em nossas entranhas (faço questão de usar “entranhas” para demarcar o lugar da animalidade em nossa vida) não é preciso mais que 100 páginas. É claro que não estou querendo desmerecer os clássicos de Tolstoi, Dostoievsk, Guimarães Rosa, Proust, e inúmeros outros, que possuem algumas centenas de páginas. O que pretendo explicitar, é que não são os números de páginas que definem uma grande obra, mas sim, a força com que as palavras chegam até nós. Acabei de ler um livro com menos de 100 páginas do filósofo argelino/francês Jacques Derrida, e posso dizer sem pestanejar, que foi uma das experiências mais incríveis que tive nos últimos meses, para não dizer anos.
Já conhecia outros textos do filósofo, que se tornou mundialmente reconhecido pela crítica à Jacques Lacan e a sua idéia de centralidade da estrutura (todo significado precede de um significante central). Sempre fui admirador de Derrida e de seu pensamento desconstrucionista, mas até então nunca tinha me aventurado a ler um livro inteiro desse autor. Ficava adiando, esperando o momento ideal, até que um belo dia, em belo horizonte (gostaram do trocadilho), quando participava de um evento nesta cidade, me deparei com um pequeno livro intitulado “O animal que logo sou”. Me apaixonei pelo título imediatamente. Lembrei que o autor algumas vezes escrevera sobre a relação dos seres humanos e não-humanos, mostrando que existia um principio ordenador da realidade que traçava uma hierarquia entre essas duas formas de vida. Deduzi que o livro abordava o tema da alteridade, da dificuldade de se reconhecer na figura do animal não-humano. Suposição que mais tarde veio se confirmar durante a leitura do livro. Derrida falava realmente da relação entre humanos e não-humanos, tecendo criticas contundentes a arbitrariedade do sistema de classificação lingüístico.
O que mais me chamou atenção, foi a maneira como o filósofo foi afetado e incitado a escrever esse texto. Num dia comum, ao sair do banho, ainda nu, Derrida se deparou com o olhar fixo de seu gato de estimação. Foi a partir desse olhar, ou melhor de uma troca de olhares, já que se trata de uma relação, que ele se viu indagado - e incomodado - a pensar sobre as idéias de “animalidade” e “ser vivente”, temas centrais da discussão proposta. Idéias que também já foram trabalhadas por outros filósofos como Heidegger e Lévinas, duas das maiores influências do filósofo francês.


Mal estar de um animal nu diante de um outro animal, assim, pode-se-ia dizer uma espécie de animal-estar: a experiência original, única e incomparável desse mal-estar que haveria em aparecer verdadeiramente nu, diante do olhar insistente do animal, um olhar benevolente ou impiedoso, surpreso ou que reconhece. Um olhar de vidente, de visionário ou de cego extralúcido. É como se eu tivesse vergonha, então nu, diante do gato, mas também vergonha de ter vergonha. (Derrida, 2002:16).


Neste momento, o filósofo se viu impelido, a ter que questionar, a sua vergonha, a sua nudez, a sua humanidade. Sentimentos que o afastavam do animal que estava diante do seus olhos, e da animalidade que se encontrava adormecida, esquecida no seu próprio recôndito, e que agora se revelava em toda sua grandeza por intermédio de uma experiência sensível. Do ponto de vista da experiência e dos afetos, o que existia naquele momento eram apenas dois animais nus, ou melhor, um animal, o próprio Derrida, já que o bichano não possui o sentimento de sua nudez. E foi nessa troca de afetos, potencializada pela sensação de encontrar-se nu diante de outro animal nu, que o filósofo passou a questionar sua condição de ser vivente. Quem sou eu, se animal é tudo que somos?


Quem sou eu então? E quem é este que eu sou? A quem perguntar senão ao outro, E talvez ao próprio gato? (pg. 18).


DERRIDA, Jacques. O Anima que logo sou. São Paulo: UNESP, 2002.